ACESSE O LIVRO: Narrativas Insurgentes
A coisa mais bonita que temos dentro de nós mesmos é a dignidade. Mesmo se ela está maltratada. Mas não há dor ou tristeza que o vento ou o mar não apaguem. Bonito é florir no meio dos ensinamentos impostos pelo poder. Bonito é florir no meio do ódio, da inveja, da mentira ou do lixo da sociedade. Bonito é sorrir ou amar quando uma cachoeira de lágrimas nos cobre a alma! Bonito é poder dizer sim e avançar. Bonito é construir e abrir as portas a partir do nada. Bonito é renascer todos os dias. Um futuro digno espera os povos indígenas de todo o mundo… O importante é prosseguir. (Eliane Potiguara)
O livro que você tem em mãos apresenta uma crítica contundente à colonialidade e ao capitalismo, às inúmeras opressões construídas pela modernidade e sustentadas na contemporaneidade. Não se trata de denúncia, que se encerra em si mesma, mas do transbordar de re-existências na construção e visibilização de conhecimentos plurais e projetos de equidade. Ou seja, é força em meio ao caos, como nos inspira a escritora, professora e poetisa indígena Eliane Potiguara. A obra surge da frutífera interlocução entre pesquisadores no I Encontro Pós-Colonial e Decolonial “Diálogos Sensíveis: produção e circulação de saberes diversos”, ocorrido entre os dias 23 e 25 de outubro de 2019, na FAED-UDESC, organizado pelo AYA – Laboratório de Estudos Pós-Coloniais e Decoloniais.3 Este livro, portanto, disponibiliza reflexões potentes, compartilhadas nas rodas de conversa do evento por pessoas de distintos campos e lócus de enunciação, na construção de um conhecimento científico coletivo, situado e suleado. Os textos que compõem a presente obra têm a decolonialidade, a interseccionalidade e a desobediência epistêmica como princípio teórico e prático e são escritos por intelectuais comprometidos com a luta antirracista, antipatriarcal e anticapitalista.
A abertura deste livro se dá com o inspirador texto “Autodecolonização: uma pesquisa pessoal no além coletivo”, de Jaider Esbell, artista Macuxi, que conectado com raízes profundas nos traz reflexões impactantes sobre e para viver (n)o Brasil. Criador de performances decoloniais, artísticas e políticas, Esbell rompe com a falaciosa e homogeneizadora identidade
nacional ao reivindicar uma identidade anterior, indígena, ancestral. É guerra e resistência contra a usurpação de suas terras e o silenciamento de corpos coletivos, é contranarrativa urgente. Em coro com Potiguara e tantas outras pessoas que fazem parte dos povos originários, Esbell demonstra que o processo colonial não se fez plenamente: “a capacidade de nos mantermos uma nação autêntica, mesmo sob uma pesada campanha bélica secular de destruição, é a nossa melhor resposta quando se exige uma performance de lidar com um mundo tão violento como a ocidentalização”.
O capítulo “Novos olhares sobre a História de Abya-Yala (América Latina): a construção dos ‘outros’, a colonialidade do ser e a relação com a natureza”, escrito pelo professor e historiador andino da Universidade Federal da Integração Latino Americana (UNILA) Gerson Galo Ledezma Meneses, dá sequência à denúncia da catástrofe da invasão dos europeus e de sua racionalidade destrutiva à Abya-Yala, que estruturou o racismo e o especismo. Não há separação possível entre a colonialidade do ser e da natureza, provoca o autor, afinal, não existe distinções cartesianas no modo de ser efetivamente decoloniais indígenas. A retomada do ser ancestral, de uma relação intrínseca entre homens, mulheres, plantas e animais, na contramão de uma divisão imposta pela modernidade entre humanos e natureza, é a decolonização necessária.
O antropólogo moçambicano Hélder Pires Amâncio, no capítulo intitulado “De(s)colonizar o conhecimento, desmarginalizar os saberes e interligar as lutas políticas ao Sul”, dialoga de forma sólida e potente com propostas teóricoepistemológicas e políticas que reconhecem, por um lado, o impacto da colonialidade no campo da produção do conhecimento e a importância, por outro, de superá-la. O mote é a necessidade urgente de articulações políticas e acadêmicas construídas no Sul Global no combate a essa assimetria de poder, sendo apresentadas inclusive algumas iniciativas existentes de redes de pesquisadores nacionais e internacionais. O texto, em si, é uma prática de desobediência epistêmica, na construção de um conhecimento suleado com Aníbal Quijano, bell hooks, Edgardo Lander, Oyèrónké Oyěwùmí, Patrícia Hill Collins, Paulin Hountondji, Valentin-Yves Mudimbe, Walter Mignolo, entre outros/as.
Na sequência, a professora de literatura Ana Rita Santiago da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) nos presenteia com o capítulo intitulado “Corpos (in)dóceis e saberes interculturais: mais um desafio à educação”, que instiga a construção de uma educação verdadeiramente emancipatória, ou seja, intercultural, antissexista e interseccional que promova a vida diante da violência do racismo e da necropolítica contemporânea. A autora propõe o entrecruzamento da “ecologia de saberes” com a “ecologia das culturas”, ou
interculturalidade, como caminho promovedor de uma circularidade dialógica não legitimadora de hierarquias, cujos “corpos-memória-ancestral-movimento” de mulheres negras (e corpos outros não hegemônicos) narram e constroem suas histórias como potências de vida no fazer pedagógico e na construção do conhecimento.
“Descolonizar a universidade: por uma educação como prática da liberdade” foi escrito por Siméia de Mello Araújo, diretora do Instituto Ella Criações Educativas, que centra seus esforços em projetos educacionais na área de direitos humanos com foco nas relações étnico-raciais e de gênero. O diálogo direto com a autora anterior, Ana Rita Santiago, e bell hooks revela a própria trajetória de Araújo na construção de propostas plurais na universidade que se contrapõem ao projeto universalista e excludente da colonialidade. Mestra em Letras, doutoranda em História no PPGH/UDESC e pesquisadora associada ao AYA, a autora caminha ao lado de outras mulheres negras feministas, e parceiros/as de luta como Paulo Freire, em busca de uma educação como prática política libertária de corpos-mentes negras.
A discente Carolyne Laurie Benícia dos Santos e o professor titular do Departamento de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) Manoel Antônio dos Santos apresentam no capítulo “Sofrimento psíquico e racismo: repercussões em um filho de família inter-racial” um tocante estudo de caso, porém não de exceção, sobre a racialização em relações afetivas no Brasil. A análise dos impactos psicossociais do racismo estrutural num homem negro, gay e filho de casal inter-racial é muito importante para que se busque a superação de sofrimentos individuais e sociais construídos historicamente num país que vive as marcas de um passado de quase quatro séculos de escravidão.
Filipe T. Calueio, mestrando em Desenvolvimento Regional na Fundação Universitária de Blumenau (FURB), em seu capítulo “A internacionalização do Estado e a desnacionalização dos povos: globalização, desenvolvimento e territórios na SADC”, abre sua reflexão a partir de um conto entre os ovimbundu de que ratos roíam dedos de crianças que ficavam sozinhas ou que dormiam sem lavar as mãos, fazendo uma analogia com as políticas econômicas derivadas de investimentos externos à África que mordem, roem e assopram até “roerem o pé inteiro”. Aponta como o continente africano foi incorporado à economia-mundo capitalista a partir de uma hierarquia política internacional dos impérios coloniais baseada na raça e no território como categorias centrais. No diálogo com intelectuais críticos às políticas coloniais/imperiais e neoliberais, estabelece uma reflexão acerca de como a globalização contemporânea produz e reproduz um desenvolvimento desigual e exploratório no contexto da África Austral que acabam por impactar e alterar os modos de produção social, econômico, político das comunidades nativas.
O haitiano-brasileiro e mestre em economia Jean Samuel Rosier, em seu capítulo “Os Haitianos nos Mundos de Trabalho e suas Redes de Sociabilidade”, nos apresenta uma narrativa pontual acerca do processo histórico de deslocamento de populações haitianas pelo mundo e, em especial, para o Brasil. O foco central de sua análise se refere à questão do trabalho que, para o autor, está relacionado à dignidade humana, e suas condições precárias na diáspora brasileira que desencadeiam problemas de sofrimento físico e psicossocial, sendo importante o estabelecimento das redes de sociabilidade e proteção entre os imigrantes. Sua discussão está imersa na própria experiência como imigrante articulada com seu trabalho no Centro de Referência de Atendimento ao Imigrante do Estado de Santa Catarina (CRAI-SC) e como educador social na Caritas Brasileira Regional Santa Catarina. Rosier destaca que os projetos voltados para os imigrantes devem ser realizados com a presença destes como atores e protagonistas das ações.
As reflexões da atriz, produtora e cineasta moçambicana Sónia André e de Lúcia Isabel da Conceição Silva, docente na Universidade Federal do Pará (UFPA), no capítulo intitulado “As nuances do ser e se sentir mulher das mulheres de Vilarejos de Moçambique”, nos conduzem a um caminho pelas costas do oceano Índico e convidam a refletir sobre o ser/sentir-se mulher e a liderança feminina em Moçambique, África, não a partir de categorias externas às suas experiências, mas de suas relações constituídas de formas outras de ser e estar no mundo. Nesse sentido, problematizam a utilização do conceito de gênero para o entendimento de algumas sociedades africanas e apontam a necessidade de elaboração de novas categorias “nãoocidentalizadas” para essa compreensão. Para as autoras, apresentar formas de ser mulher diversas de moldes e lugares hegemônicos possibilita conhecer rostos, saberes, pensares, corpos, vozes “dignas de serem seguidas e respeitadas em relação às demais”.
No capítulo “Configurações Rizomáticas Kel Tamacheque, Songhoï e Wadaae: encontros intercomunitários saarianos”, o pesquisador e historiador Mahfouz Ag Adnane, através de uma perspectiva endógena, nos conduz aos encontros intercomunitários e festivais marcados por cores, sons, músicas, gestos, corpos e tradições orais históricas nas areias do Saara africano. A partir de entrevistas realizadas em campo no Mali, entre novembro de 2016 e março de 2017, a abordagem se dá sobre os encontros sazonais tamacheque na região de Gao (Mali) e suas conexões com os Songhoï e os Wadaabe, momentos constituídos por pessoas que desafiam verdades estabelecidas, que possibilitam o partilhamento e o entrelaçamento de experiências e da cultura tamacheque engendrando a construção de laços e coesão.
É de Cabinda, em Angola, com suas costas banhadas pelas águas do Atlântico que ecoam, na escrita, as palavras do professor e historiador Joaquim Paka Massanga, docente no Instituto Superior de Ciências da Educação de Cabinda da Universidade Onze de Novembro (ISCEDCabinda/UON/Angola). Com o título “A modernidade compósita, Ciência e Cultura: (Entre)vidências do pensamento Pós e Decolonial no diálogo com a África”, o autor nos instiga a pensar sobre a escrita da história de África apontando que esta deve ser feita com intelectuais africanos. Tal perspectiva resulta na emergência de sujeitos e autores outros da e para a História, evidenciando como africanos podem e devem construir suas próprias narrativas, o que não pressupõe um isolamento ou afastamento em relação ao Ocidente e ao mundo. A proposta do autor é criar possibilidades de canais de interlocução, mas, ainda, propor um desafio de deslocalizar o eurocentrismo e a colonialidade, apontando que de África e de seus intelectuais também surgem conhecimentos de que o mundo atual necessita.
O capítulo “Narrativas Históricas e Ciladas Coloniais”, escrito por Adriano Denovac, proveniente da tradição de seus ancestrais, filho de Geni e de Sàngo, doutorando do PPGH/UDESC e pesquisador associado ao AYA, nos convida a pensar as histórias, as memórias, os tempos e as narrativas a partir de uma forte crítica à modernidade e seus genocídios e epistemicídios. O autor estabelece sua reflexão a partir das memórias e da experiência vivida durante o I Encontro Pós colonial e Decolonial, sobretudo do diálogo que estabeleceu com os professores Joaquim Paka Massanga e Gerson Galo Ledezma Meneses. A base de sua reflexão se encontra na perspectiva de que a produção do conhecimento, em especial a histórica, deve ser diversa, descentralizando o eurocentrismo e estabelecendo o diálogo “aberto com outras leituras processos e vivências, como uma forma de comunicação das realidades históricas múltiplas. Narrativas históricas de fato. Projetos pluriversais de fato”. Denovac finaliza seu artigo nos desafiando e provocando a (re)pensar o tempo, substrato do ofício do historiador, deslocado-o de apenas uma concepção moderna e colonial.
Celso Sánchez, poeta, ativista ambiental e em direitos humanos, biólogo e professor na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), nos presenteia com um capítulo impactante no qual discute sobre a importância dos aportes dos estudos em decolonialidade para o campo da educação ambiental. Sob o título “Caminhos para uma Educação Ambiental Desde El Sur”, Sánchez evidencia práticas decoloniais a partir das ações desenvolvidas pelo Grupo de Estudos em Educação Ambiental desde el Sur (GEASUR), do qual é coordenador. A partir de uma crítica incisiva às políticas de genocídio, epistemicídio e necropolítica do capitalismo global e no diálogo com intelectuais latinoamericanos, o autor afirma, entre outras questões, que é preciso reconhecer a pluralidade de saberes existentes para além dos muros da universidade. Saberes que são produzidos em diferentes espaços, por diversas pessoas: “nas aldeias, nos terreiros, nas praças, em encruzilhadas, rodas de capoeiras, nos sertões, nos becos das favelas, em ocupações, dentre tantos outros territórios de conhecimentos”. Portanto, o aprendizado e a transformação social se faz no diálogo, na luta comprometida com a transformação social, na resistência.
O capítulo que encerra esta obra, de nossa autoria, parte da constatação de que não há uma teoria decolonial desconectada de práticas decoloniais. É necessário que se busque construir projetos políticos e epistêmicos a partir do verdadeiro encontro entre pessoas distintas. Nesse sentido, o texto intitulado “Os homens da cor de giz ou do povo da mercadoria: diálogo sobre histórias com Chinua Achebe e Davi Kopenawa” estabelece interlocução com intelectuais indígenas, africanos e afrodiaspóricos/as. Busca-se deslocar, dessa forma, o eurocentrismo epistemológico no campo da História a partir, sobretudo, dos conhecimentos do escritor nigeriano igbo e do xamã yanomami. Por fim, apresentamos como proposta prática de decolonização do conhecimento no campo da história uma série de podcasts lançada recentemente chamada AYAcast, onde ecoam ricas e singulares narrativas históricas produzidas por sujeitos de diversos lócus de enunciação e campos de atuação.
Como colocado no início desta apresentação, há em comum nos capítulos aqui apresentados a contundente crítica à colonialidade e ao capitalismo. A potência das discussões está em estabelecer uma reflexão que parte do local para o global, que tem nas histórias, nos tempos, nos corpos, nas experiências e nas subjetividades as bases para a emergência de conhecimentos a partir de formas de ser, pensar, estar, ver e sentir no mundo que resistem à violência e re-existem. São insurgentes porque, constituídas de posições diversas reveladas num livro que não busca um modelo único de interpretação, ao contrário, combate uma suposta universalidade imposta pela modernidade/colonialidade, evidencia como é possível construir redes colaborativas de diálogos cujo cerne é a proposição de construção de projetos
plurais e epistemologias outras.
Este livro se constitui como base inicial de dois projetos acadêmicos e políticos. Inaugura a Coleção AYA, voltada para a publicação de trabalhos nos campos dos estudos africanos e indígenas, na perspectiva teórico-prática pós e decolonial, em parceria com o Selo NYOTA. Representa também a constituição da Rede Multidisciplinar de Estudos Pós-Coloniais e Decoloniais, cujos alguns dos participantes compõem a presente publicação. Ambos os projetos têm como pressuposto a indissociabilidade entre pesquisa, ensino e extensão universitária. Em um contexto presente marcado por um projeto de estado de morte, violência, genocídio, epistemicídio e intolerâncias, essas ações e a presente publicação se consituem, para nós enquanto coletivo, possibilidades de insistir na construção de práticas, sentires, saberes e conhecimentos transformadores no âmbito da universidade e na sua contribuição para a sociedade. Insistimos na existência da possibilidade da partilha, do em-comum, da luta e da vida.
Quantas vezes não vacilamos por causa das falas do mundo?
Quando sentires medo, respira fundo e recobra a coragem.
Desce para dentro de ti e procura as razões da tua luta.
Deixa a liberdade guiar o teu espírito até o coração do infinito.
(Paulina Chiziane, 2018)
Ilha de Santa Catarina, novembro de 2020.
Gostaria de adquirir o livro Narrativas Insurgentes impresso. Como posso adquiri-lo?
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Boa tarde Luciana! Para adquirir a versão impressa preencha o formulário no link a seguir: https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSeJTm3QW0Ef-K3nkIgYF-5CeyOgO48F3DGIbC6Exrox_Xgv2g/viewform
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Olá,
Como posso adquirir o livro. Obrigada.
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Boa tarde, Francielle. O livro está disponível apenas de forma online e pode ser acessado a partir deste link: https://ayalaboratorio.files.wordpress.com/2020/12/narrativas-insurgentes.pdf
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