Tecendo caminhos de pesquisa por Willian Costa

Este texto é antes de tudo um exercício livre e experimental de construção de um diálogo plural e multidisciplinar. Quem propõe essa experimentação escrita é um pesquisador em formação na área da História atravessado pelas Artes Visuais durante esse processo. Esse atravessamento veio a partir da produção da artista, educadora e curadora negra Rosana Paulino. As reflexões aqui tecidas, em um formato de carta, são fruto de uma caminhada de pesquisa desenvolvida no AYA, um laboratório caracterizado pela pluralidade de pessoas e pela coletividade. Um espaço em que encontrei possibilidades de construir na academia diálogos sensíveis entre mim e as pessoas em minha pesquisa; entre mim e Rosana Paulino. 


Rosana, espero que esteja bem. 

Não costumo escrever muitas cartas. Na verdade, escrevi muito poucas em minha vida, algumas na infância talvez. As letras nem sempre tem sido minha forma preferida de me comunicar com o mundo, mas resolvi fazer esse exercício aqui. Me senti confortável ao falar com você; mesmo sabendo que você pode nem chegar a ler essa carta (risos).

Não me lembro ao certo de quando tive o primeiro contato com o seu trabalho Parede da memória, resultado de um processo artístico do seu tempo de graduação que se  tornou uma de suas obras mais famosas. No entanto, lembro que fiquei muito mexido, acho que uma mistura de emoções, ao me deparar com as oito fotografias de sua família multiplicadas em mil e quinhentas trouxinhas, em formato de patuás, costuradas e dispostas em uma grande parede branca. Fiquei instigado! 

As fotografias de família são suportes de memórias, sentimentos e significados. Para mim sempre foram objetos de curiosidade. Quem é essa? Esse é o tio? Por que a avó está vestida assim? Essas eram perguntas que costumava fazer para minha mãe quando olhava os álbuns lá de casa. Composto principalmente pelo acervo da família dela, as fotos eram, em sua maioria, coloridas. Isso mudou quando minha avó faleceu e seu álbum de fotografias veio para minha mãe. Composto, na maior parte, por fotos de pessoas negras, o álbum trazia alguns registros do cotidiano, de festas, e de duas viagens da família: uma para o Rio de Janeiro e outra para Santos. A maioria  das fotos era em preto e branco com datas variadas. Acho que no dia em que vi a parede da memória eu enxerguei parte da história da minha família materna. 

Esse foi o primeiro motivo pelo qual fui afetado, no sentido de afeto e provocação para pensar, ao olhar seu trabalho. Contudo, foi como você transformou as fotografias, atribuiu significados e as costurou juntas que instigou o pesquisador em mim. Enxerguei no processo de costura desenvolvido por você a possibilidade de pensar uma metodologia para o trabalho na História. Na época, eu estava desenvolvendo minha dissertação de Mestrado a partir das memórias e narrativas de pessoas negras da cidade de Laguna, sul de Santa Catarina, onde nasci e fui criado. 

Na História usamos fontes históricas para construir nossas interpretações e narrativas sobre o passado. Em minha pesquisa essas fontes eram orais, construídas em entrevistas com pessoas negras de Laguna; eram fotografias de diferentes espaços negros da cidade e eram também múltiplos documentos encontrados nos arquivos. Enfim, Rosana, múltiplos suportes de memória, assim como as fotografias de sua família, que só puderam ser reunidos e tecidos em uma narrativa histórica a partir da inspiração em sua metodologia da costura da memória. Uma metodologia sensível e potente; um modo de produzir conhecimento que, para além de criar uma visualidade, constrói uma interpretação de (re)existência; uma possibilidade de romper com o epistemicídio, como nos ensina Sueli Carneiro. Uma metodologia em que a marca da sutura, resultado de um processo de cura da violência colonial, é aparente. Entendi essa potência da costura da memória, e agora também da sutura, quando ouvi você falar da sua série “Assentamento”, na qual você tensiona a História ao tomar para si uma narrativa visual da pseudociência do século XIX e (re)constitui a fotografia de uma mulher negra. Quando você fez isso, acho que não buscou apagar as marcas da violência colonial, mas na metodologia da (re)constituição e sutura da fotografia, nesse caso um suporte de memória colonial, você construiu uma visualidade histórica que ressignifica e complexifica as experiências de pessoas negras no Brasil, em específico de mulheres negras. A fotografia, bem como uma narrativa histórica racista do século XIX, passam a ter outros significados a partir da sua intervenção. 

São muitos os atravessamentos que seu trabalho e sua trajetória intelectual e artística me causam. Afeto, instigar, emoção, mexido são algumas das palavras que usei para tentar desenvolver uma reflexão que desse conta de um processo de sentipensar. Um processo que, agora, já me encaminhando para o final dessa carta, agradeço ter acontecido a partir da possibilidade de ter te encontrado durante a caminhada. Espero que um dia esse encontro possa ser pessoalmente. 

Um abraço, 

Will

Florianópolis, 23 de outubro de 2023. 

Ps: estou ansioso para ir à bienal de SP e ver seus trabalhos!! 

Conheça mais sobre Rosana Paulino no site: https://rosanapaulino.com.br/

Parede da Memória, 1994/2015

Instalação patuás em manta acrílica e tecido costurados com linha e algodão, fotocópia sobre papel e aquarela

8 x 8 x 3 cm

Assentamento. 2013

Instalação: impressão digital sobre tecido, desenho, linóleo, costura, bordado. Tecidos

180 x 68 cm

Assentamento. 2013

Instalação: impressão digital sobre tecido, desenho, linóleo, costura, bordado. Tecidos

180 x 68 cm

Assentamento. 2013

Instalação: impressão digital sobre tecido, desenho, linóleo, costura, bordado. Tecidos

180 x 68 cm

Fonte: https://rosanapaulino.com.br/ Acesso em:19/10/2023.


Autor

William Felipe Martins Costa

Doutorando em História no Programa de Pós-graduação em História da UDESC e integrante do AYA – Laboratório de Estudos Pós-coloniais e Decoloniais. Atua em pesquisas e projetos de extensão nas áreas dos Estudos Africanos, Afro-brasileiros, Estudos Pós-Coloniais, Decoloniais e História de Santa Catarina.

AYA LABORATÓRIO

Laboratório de Estudos Pós-coloniais e Decoloniais – AYA