Em La Noire de…, o primeiro longa de Sembène Ousmane, nós acompanhamos a história e as desventuras de Diouana pelo sul da França. Na casa dos patrões, ela só vê o desencantamento dos seus sonhos a partir das paredes de um apartamento em que o racismo e o colonialismo são imperadores e se revolta.
Uma história tem por característica principal o início, o meio e o fim, e toda a personagem precisa querer alguma coisa, nem que seja ficar em paz. Se os personagens não quiserem, a história não vai à frente. Em La Noire de… Diouana, a personagem principal desta história, tem um querer, tem um sonho: quer imigrar do Senegal e ir para a França, quer ver a Riviera Francesa, com as suas praias e seus artigos de luxo.
O objetivo de Diouana era firme e não seria impedido por nada ou por ninguém, não havia distrações. Sua família, seu potencial namorado, seus amigos, ou mesmo as suas conexões com a terra onde nasceu – nada disso era um impedimento para o seu sonho. E quando nós, espectadoras e espectadores, a encontramos, ela já está no navio chegando no porto de Marselha
Firmada a história, o desenvolvimento da narrativa nos mostra o quanto o sonho de uma terra melhor, de um lugar cheio de riquezas, vai se mostrando pouco efetivo para uma jovem africana. Ao longo da passagem dos quadros vamos testemunhando a transformação da vida em pesadelo. No lugar das oportunidades, a prisão de uma casa sem vida, do luxo ao trabalho doméstico, do respeito ao racismo.
A vida de Diouana não era a que ela esperava e em flashbacks vamos tomando conhecimento das cenas que a levam até lá, na Riviera Francesa. Cenas como a sua busca por emprego, a chegada na casa dos patrões no Senegal, o seu caso com um jovem senegalês pan-africanista e a sua decisão de dar de presente uma máscara da sua família.
Diouana queria viver o seu sonho, Diouana encontra a realidade, Diouana se recusa. Nesta montagem, entre os flashbacks e a realidade vivida pela personagem no apartamento, somos testemunhas da sua transformação. Agora que o racismo a desumanizou, sua cultura foi fetichizada e ela tem ódio pelos patrões. Diouana toma para si a recusa desta situação, mesmo com todas as dificuldades.
Transformação. Recusa. Revolta.
A passagem da personagem de Diouana de uma visão para outra é o que produz na narrativa de La Noire de… a sua grandiosidade. Através dela, Sembène quer denunciar o racismo e, também, destacar a humanidade das personagens africanas. Se por um lado a Europa utiliza do racismo para construir relações desiguais, corroer os sonhos, fechar as oportunidades, desumanizar, do outro, as narrativas africanas devem humanizar, recusar as formas eurocêntricas de representação e questionar as formas de poder.
Sembène defendia que o cinema não era o espaço da revolução – este papel era das ruas, da ação civil organizada -, mas cabia ao cinema polemizar os assuntos, fazer com que eles fossem discutidos. Recusar. Não é possível um mundo sem os africanos e as africanas, não é possível continuar com uma memória única sobre o colonialismo e a colonialidade, não é possível continuar com poderes e práticas de elites africanas que subjugam o povo – para levantar alguns temas presentes nas narrativas de Sembène.
A jovem Diouana funda um cinema político, é sua primeira personagem, e a partir dela vemos outras e outros também recusando. Neste conceito – a recusa – vemos Sembène construindo o que ele entende ser a ignição que pode gerar a transformação dos paradigmas. Para o diretor, se algo incomoda na sociedade – no caso dele a senegalesa -, ou se algo violenta, é preciso negá-la primeiro, para então no embate político, nas ruas, transformá-la.
Na sua narrativa negar também está no fazer fílmico, nos detalhes. Na forma como ele articula o contar a história através das imagens e das relações. Por exemplo, quem é nomeado? Diouana tem um nome, os patrões não, eles não têm um nome, são os patrões e só. Na estética, há sempre um contraste entre o preto e o branco: seja no figurino claro com a pele escura da atriz ou desta com os fundos brancos, especialmente no apartamento na França.
Neste ano que completa o seu centenário de nascimento, Sembène merece ser celebrado pela sua arte, como cineasta e literato engajado com a transformação, como pioneiro na produção de narrativas que construíssem imagens emancipatórias. Sembène é cada vez mais atual, inspirando a produção de imagens que recusam.
Autor

Ms. Vinícius Pinto Gomes (Emitai Produções)
Graduado em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), atuando dentro dos estudos africanos e da diáspora, dentro do NEAB/UDESC e, posteriormente no AYA – Laboratório de Estudos Pós-Coloniais e Decoloniais. Vinculando-se em 2016 ao LIS – Laboratório de Imagem e Som da UDESC. Têm experiência na área de História e no Cinema, especialmente, vinculado na perspectiva dos Estudos Africanos, na produção cinematográfica e na relações entre História e Cinema.




