Rúbia Divino por Saul Smith

Às vezes, a vida dá um jeito de nos surpreender com encontros que a gente nem imagina. Foi assim com a Rúbia Divino. Num sábado qualquer, saí para curtir um samba no Centro de Floripa, costumo fazer isso, saio sozinho, sem grandes expectativa, encontro um grupo de conhecidos aqui outro na próxima esquina e nessa encontro  a Julis, uma amiga, que me para bem na encruzilhada da Vitor Meireles com a Nunes Machado: “Saul, essa aqui é a Rúbia. Vocês precisam se conhecer!” Trocamos contatos ali mesmo, meio no improviso.
O verdadeiro impacto veio quando entrei no samba e, de repente, a voz da Rúbia se destacou no meio da roda, em algumas frases que cantava. Era impossível não se deixar levar. Nas semanas que seguiram, fiquei curioso e fui atrás de saber mais sobre ela. Encantado, resolvi entrar em contato, já pensando em convidá-la para compartilhar seus pensamentos no campo decolonial aqui no Mbari.

Minha música, de fato, tem referências familiares e referências pretas. Eu venho de um contexto social periférico em que a questão da família sempre foi algo muito valorizado, muito comentado: O pensamento e as ações no sentido do coletivo. Eu acredito que isso também faz parte da perpetuação dos ensinamentos de valores da nossa diáspora, nesses valores civilizatórios afrobrassileiros que passam por esse lugar da circularidade, da tradição, da família…. E a gente vem reconfigurando isso a partir de uma visão que a gente tem de África e reverberando de alguma forma nessa nossa vida pós colonial aqui no Brasil.

Minha musicalidade vem desde muito cedo e o meu disco acaba vindo desse lugar de referência também onde eu  lembro da minha vó, eu muito nova, ela cantarolava vários sambas… Se você conversava com ela, ela puxava alguma coisa de samba. Meu pai ele vem com essa referência da música instrumental norte americana. Da música instrumental brasileira e me apresentando tudo isso em formato de fita cassete, de vinil…  De um lado do gravador ta Stevie Wonder e do outro lado Tom Jobim, Quarteto em si.

A gente vem desse contexto periférico e aí todas as minhas referências quando eu gravo meus primeiros trabalhos autorais passam por esses lugares.”

Rúbia, que começou a cantar aos 8 anos de idade no bairro da Tijuca nos corais da escola e da igreja no Rio de Janeiro, mais tarde lançou suas primeiras composições e conquista festivais dentro dessa mescla que faz com o samba e o jazz.

“ …e depois eu fui reconstruindo e agregando dentro da minha sonoridade outras trajetórias musicais que perpassam a minha história. Eu tenho meu encontro com o Maracatu em 2015 num show do Nação Zumbi, eu vejo um grupo de Maracatu de Maringá… Eu quero tocar isso, isso me tocou de alguma forma… Eu sempre fui uma pessoa muito envolvida dentro dessa cena a partir do momento que entrei para o Maracatu e em paralelo a isso eu também passei a agregar a linha de frente dos movimentos de militância negra. Isso tudo foi um restart para eu poder me reconectar com a minha identidade de mulher negra.”

No sentipensar de Rúbia, a música é um espaço de reconexão com a ancestralidade e de afirmação de sua identidade negra. Sua jornada de redescoberta e militância negra é também uma jornada de cura e de reencontro consigo mesma, onde a arte e a cultura se tornam ferramentas para transcender traumas e celebrar sua potência enquanto mulher preta.

“ Eu fiz faculdade  no Paraná, e esse lugar do ensino superior foi um lugar que me embranqueceu mas ao mesmo tempo me trouxe a provocação de fazer produções acadêmicos questionando o porquê de pessoas pretas não fazerem parte desse espaços como professores e outras questões que precisam ser discutidas no meio acadêmico.

Foi através desses estudos de tudo isso que eu propus… a vida propôs pra mim, na verdade e algumas coisas eu fui abraçando porque fazia sentido pra mim. Eu crio o Transborda (2021) que é esse lugar de me reconectar com a minha ancestralidade, de me reconectar com a Rúbia criança e de me entender em um lugar de trauma…  De me entender dentro da negritude, num lugar de potência, no lugar do fazer e no lugar de ser a mulher que sou e que me encontro hoje. Então é interessante os códigos que eu quis trazer e os códigos do subconsciente que as pessoas decodificaram a partir da escuta da manifestação desse disco, esse transbordar de amor, de dores, de afetos, de raivas de vitórias, traições. O disco permeia esse lugar das nossas emoções, trazendo isso para o lugar da racionalidade. 

Hoje eu vejo que muitas pessoas pretas entendem a importância e a relevância de perpetuar legado. A gente sempre viu isso dentro de um recorte eurocêntrico, sempre nesse lugar da riqueza material e aí a gente entra em outro lugar que é  quando a gente fala sobre prosperidade. O que é de fato prosperidade para pessoas como a gente? 

Eu fui criada desde nova nesse lugar de pensar em coletivo e isso acabou dificultando muito identificar a que momento eu teria que ser a Rúbia, Rúbia ( no individual) ou quando eu precisaria, e teria que ser, e fui ensinada a ser a Rúbia para a comunidade. “

Eu posso dizer que o disco de Rúbia transborda família, militância, autodescoberta individual, medos e anseios, através de uma investigação preparando o terreno para os próximos trabalhos onde  vejo que a observação continuará dando espaço a novas vivências e novos entendimentos.

Essa troca que tive com a Rúbia me faz refletir também sobre o conceito de sentipensar ao unir suas vivências emocionais e racionais em uma narrativa que explora a identidade e a ancestralidade pela música. A partir de suas raízes periféricas e familiares, Rúbia conecta as memórias afetivas com sua avó, as influências musicais do pai e as tradições da diáspora africana em um caminho que atravessa tanto o coletivo quanto o individual.

Autoria

Saul Smith (Licenciatura em Artes Visuais – UDESC/CEART)

Artista Visual e músico, Graduando em Artes Visuais Licenciatura pela UDESC e integrante do AYA – Laboratório de Estudos Pós-coloniais e Decoloniais sendo bolsista do Programa de Extensão Movimentos Decoloniais: Práticas, Diálogos e o Sentipensar, atuando no Circuito de Exposições poéticas da relação. Utiliza linguagens como gravura, pintura e fotografia em sua pesquisa sobre os territórios de afeto através da rememoração de símbolos da infância.

Referências
https://noticias.maringa.com/14044/rubia-guidin-se-apresenta-no-auditorio-luzamor-nesta-quinta-feira-14
https://www.reverbnation.com/rubiaguidin/song/18197492-sobre-todas-as-coisas
Experiencias teórico-prácticas. In: Una sociología sentipensante para América Latina. Cidade do México: Siglo veintiuno, Clacso, 2015

AYA LABORATÓRIO

Laboratório de Estudos Pós-coloniais e Decoloniais – AYA