“A invenção das mulheres”:O debate sobre colonialismo e gênerona obra de Oyèrónkẹ́Oyěwùmí

Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí é cientista política e socióloga formada na Universidade de Ibadan (Nigéria) e na Universidade de Berkeley, na Califórnia (EUA). Ocupa o cargo de professora na Universidade Stony Brook, em Nova Iorque (EUA) nas temáticas dos estudos africanos, feminismo,estudos de gênero, pan-africanismo, entre outros.

A obra “A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero” é resultado de sua tese de doutorado. Publicada, pela primeira vez, em 1997, a obra foi premiada na categoria Distinguished Book Award in the Gender and Sex Section pela American Sociological Association, e finalista do Herskovits Prize, promovido pelo African Studies Association, ambos em 1998. Para esta resenha, analiso a primeira edição traduzida para o português e publicada no Brasil mais de vinte anos depois pela Editora Bazar do Tempo, ou seja, somente no ano de 2021.

A cuidadosa tarefa da tradução ficou a cargo de Wanderson Flor do Nascimento, filósofo e professor do Departamento de Filosofia, dos programas de pós-graduação em Bioética, Metafísica e Direitos Humanos e Cidadania, da Universidade de Brasília (UnB). A edição brasileira conta também com o posfácio de Cláudia Miranda, doutora em Educação e professora do Departamento de Didática e do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
Quanto à discussão proposta por Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí nesta obra, a autora concentra sua análise na cultura Oyó-Iorubá, ressaltando as especificidades que circunscrevem suas reflexões, quais sejam: àquelas referentes à cultura Oyó, portanto, sendo temoroso estendê-las para outras culturas e contextos (p. 21) que, segundo a autora, são diversas mesmo dentro da própria Iorubalândia, nome que designa o território ao sudoeste da Nigéria ocupado por populações iorubás.

Em “Visualizando o corpo: teorias ocidentais e sujeitos africanos”, Oyèrónkẹ́ problematiza a predominância da interpretação de matriz ocidentalizada no campo dos Estudos Africanos e as implicações disto na produção do conhecimento, como a primazia do visual na percepção do mundo, a cosmovisão (p. 28). Trata-se daquilo que a autora denomina como “bio-lógica”, ou seja, uma lógica cultural a partir de imperativos enraizados na biologia e que fundamentam a ideia de categorias fixas para a interpretação social, como o gênero e a raça. Nesse sentido, Oyèrónkẹ́ defende uma lógica mais inclusiva, que dê conta de descrever concepções de mundo que privilegiam múltiplos sentidos, ou seja, a cosmopercepção (p. 29). E, todavia, que não só o gênero é socialmente construído, mas também os critérios para definir o que é masculino e feminino, o que implica considerar que, em algumas sociedades, como a “Velha Oyó”, a ideia de gênero não existiu (p. 39).

No capítulo seguinte, “(Re)constituindo a cosmologia e as instituições socioculturais OyóIorubás”, a autora contrapõe as versões generificadas de pesquisadoras e pesquisadores que se debruçam sobre a história das populações Iorubás apontando-as como parte de um aparato ideológico de viés imperialista e aceita com naturalidade, inclusive por estudiosas e estudiosos africanos. Aqui a linguagem tem um papel fundamental para o entendimento do argumento apresentado, pois determinadas categorias foram traduzidas de forma equivocada na interpretação de papéis sociais na Velha Oyó.

Cabe destacar alguns exemplos que ela apresenta nesse segundo capítulo e que ajudam
na compreensão de suas discussões e de sua crítica a essa forma de perceber e compreender
sociedades distintas a partir de uma percepção ocidental. Vejamos: obìnrin e ọkùnrin foram lidos,
respectivamente, como fêmea/mulher e macho/homem, no entanto, essas categorias iorubás
não estão entre si relacionadas da mesma forma que o binômio mulher/homem estão (p. 71).

Primeiramente possuem sufixos similares (rin) sugerindo uma humanidade em comum, com os prefixos denotando a diferença anatômica. Segundo, não estão associados a nenhum tipo de classificação social ou hierárquica (como verifica-se quando falamos em homem/mulher). Terceiro, são aplicados somente a seres humanos adultos e tampouco implicam diferentes papéis naquela sociedade (p. 73), ou seja, trata-se de uma “distinção (que) não se estende além de questões diretamente relacionadas à reprodução” (p. 75).

A fim de demarcar essa especificidade de distinção sem diferenças com conotações hierárquicas, Oyèrónkẹ́ formula os conceitos anamacho, anafêmea e anasexo (ana = anatomia) de modo a “ressaltar o fato de que, na cosmopercepção iorubá, é possível reconhecer essas distinções fisiológicas sem projetar inerentemente uma hierarquia das duas categorias sociais” (p. 72).

A partir deste e de outros exemplos, Oyèrónkẹ́ mapeia o mundo Oyó-Iorubá “em seus próprios termos” (p. 25) no exame dos papéis de iorubás tendo como centralidade a senioridade, categorização que fundamenta a classificação social com base na idade cronológica (p. 80).

Voltado especificamente para a discussão com e a partir de teóricos que escreveram a história iorubá, o capítulo “Fazendo história, criando gênero: a invenção de homens e reis na escrita das tradições orais de Oyó” discute os problemas de tradução linguística e cultural do iorubá para o inglês e a generificação do passado iorubá resultante dos paradigmas ocidentalizados de quem pesquisa. “Homens” e “mulheres”, como a autora afirma, são inventados enquanto categoria social na interpretação da história da “Velha Oyó” e com isso os “atores femininos” ou estão ausentes ou, quando reconhecidos, são “reduzidos a exceções” (p. 135). Nessa interpretação, a antiga sociedade de Oyó é apresentada dominada por machos, sem que qualquer evidência aponte para isso, a não ser as próprias ferramentas epistemológicas do pesquisador. Termos como aláàfin e ọba (que significam governante) foram traduzidos como rei, categoria masculina nos termos ocidentais, implicando uma suposição de que governantes de Oyó anteriores ao século XIX eram machos e que esta era a norma, como evidenciado na lista dinástica elaborada pelo reverendo Samuel Johnson publicado em 1921 (p. 141-142). A autora conclui, por meio de sua análise, que “a atribuição do gênero masculino” aos aláàfin, listados por Johnson, não é nada mais que uma “invenção” (p. 147) e que esta deriva de um interpretativo em paralelo à realeza europeia.

Ao mesmo tempo, os cargos ocupados pelas anafêmeas na sociedade de Oyó são reduzidos em seu significado e importância, leitura que não se sustenta diante das evidências que autora analisa. Instituições iorubás como orò e ògbóni, as quais funcionam na atualidade como instituições exclusivamente masculinas, são, de acordo com a autora, inclusões já do período de transformações resultantes da presença cada vez maior de europeus, a partir da segunda metade do século XIX (p. 182). É justamente sobre as implicações dessa presença europeia na Iorubalândia que o capítulo seguinte se debruça. Sob o título “Colonizando corpos e mentes: gênero e colonialismo”, Oyèrónkẹ́ elucida como o colonialismo foi o responsável pela substituição do sistema de senioridade no qual a sociedade

iorubá se organizava por outro, o patriarcal, “no qual o sexo feminino é sempre inferior e subordinado ao sexo masculino” (p.227). O Estado colonial e suas prerrogativas de hierarquização de raça, classe e de gênero implicaram na Iorubalândia em um processo de subordinação das fêmeas cujos reflexos estão presentes até hoje: baixa escolarização, corrosão de direitos, menore oportunidades de acumular riqueza, de obter cargos públicos e estratégicos. Obìnrin transformaram-se em mulheres. E de mulheres para “mulheres sem importância” (p. 230).

No último capítulo, intitulado “A tradução das culturas: generificando a linguagem, a oralitura e a cosmopercepção iorubás”, a autora discute a tradução iorubá-inglês e como esta fracassa no “reconhecimento da diferenças entre as duas culturas” (p. 239). Toda tradução por si só é uma interpretação, no entanto quando ela se pauta em concepções de mundo previamente formatadas a partir de uma matriz de conhecimento que considera as experiências europeias como universais, os resultados dessa interpretação dizem mais do lugar do pesquisador do que da sociedade que ele pretende analisar. Assim, “não se trata de quais perguntas são feitas, mas de quem as faz e por que as faz” (p. 258). A proposta de Oyèrónkẹ́ é de que questões de primeira ordem sejam colocadas nas pesquisas acerca da sociedade iorubá, que não pressuponha o gênero a priori, mas que interrogam a concepção iorubá da diferença e como o corpo é usado para tal. Partindo do objetivo de analisar a construção da ideia de gênero na sociedade iorubá de Oyó, Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí vai além, ao instigar um amplo debate nos mais variados campos do conhecimento, dentre eles, a História, campo no qual atuo, no sentido de incorporar epistemologias africanas para a interpretação e análise de contexto africanos. Como afirma Cláudia Miranda no posfácio, a autora “inclui a tradução como eixo essencial de perspectivas inclusivas” (p. 288) problematizando o universalismo hegemônico.

Analisando as dimensões filosóficas da obra de Oyèrónkẹ́, Wanderson Flor do Nascimento, em seu ensaio, pontua o alerta da autora sobre aplicarmos teorias ou conceitos estranhos ao contexto estudado, “sem uma percepção de como sua lógica cultural se entranha nessas elaborações” (2019, p. 17). Para Patrícia Hill Collins, “a natureza da tradução reflete o suposto valor das ideias nos diferentes lados de uma divisão cultural” (2019, p. 28) e os espaços nos quais a tradução se dá são “zonas de fronteira epistemológica, onde o conhecimento é construído via confiança” (2019, p. 29).
É dessa confiança que se trata quando Oyèrónkẹ́ abre críticas ao predomínio das tradições
intelectuais ocidentais que insistem em projetar os africanos como o “Outro” (p. 56), o que deve
ser dominado, que não é capaz de teorizar sobre si e sua própria história, cujo conhecimento é
“reduzido ao nível do instintivo ou primordial (primitivo)” (p. 60).

A obra não foi isenta de críticas oriundas de estudiosos do campo, seja por sua metodologia de análise como pela abordagem referente ao gênero, das quais se destacam a antropóloga argentina Rita Segato e a nigeriana Bibi Bakare Yusuf, cujos argumentos estão detalhados no ensaio de Wanderson (2019). Porém é inegável que, ao colocar em cheque as interpretações universalistas, historicizar e explicar a abordagem androcêntrica nas pesquisas sobre a sociedade iorubá, além de advogar em favor de uma abordagem que considere as pessoas que pesquisam e formulam conceitos e teorias, como participantes e não mero observadores, a obra faz jus ao título de marco referencial no campo dos estudos de gênero e dos estudos africanos.

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Autoria

Tathiana Cristina da Silva Anizio Cassiano (Doutoranda – PPGH/UDESC)

Graduada (bacharelado e licenciatura) em História Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), mestra em Ensino de História pelo Programa de Mestrado Profissional em Ensino de História pela Universidade do Estado de Santa Catarina(PROFHISTÓRIA-UDESC), doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), na linha de pesquisa Políticas de Memória e Narrativas Históricas. Vinculada ao AYA -Laboratório de Estudos Pós-Coloniais e Decoloniais, do Centro de Ciências Humanas e da Educação (FAED/UDESC), ao Grupo de Trabalho em História da África da Associação Nacional de História, seção Santa Catarina (GT África – SC), à Rede de Historiadorxs Negrxs e bolsista CAPES. Interessa-se por pesquisas no campo dos Estudos Africanos, História da Nigéria, Literatura africana, Literatura em língua inglesa, Estudos Feministas/Gênero, Estudos Pós-coloniais e Decolonialidade.

REFERÊNCIAS

COLLINS, P. H. Sobre Tradução e Ativismos. Revista Ártemis, v. 23, n. 1, p. 25-32, jan-jun, 2019.
OYEWUMI, O. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discur-sos ocidentais de gênero. Tradução Wanderson Flor do Nascimento. 1a. ed. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
NASCIMENTO, W. F. Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí: potências filosóficas de uma reflexão. Problemata – International Journal of Philosophy. v. 10, n. 2, p. 8-28, 2019.

AYA LABORATÓRIO

Laboratório de Estudos Pós-coloniais e Decoloniais – AYA