“9 de novembro
26 tesouros reais do reino de Daomé estão prestes a deixar Paris, retornando à sua terra de origem, a atual República do Benin..
Esses artefatos estão entre os milhares saqueados pelas tropas coloniais francesas durante a invasão de 1892.
Para eles, 130 anos de cativeiro estão chegando ao fim. ”
Como reagimos à restituição para produzir novos conhecimentos?
Dahomey, documentário idealizado, dirigido e produzido por Mati Diop apresenta o retorno de 26 objetos da cultura material do antigo Daomé a seu território de origem, a atual República do Benin. O filme foi lançado em 2024 por meio de uma coprodução entre o Benin, o Senegal e a França. A diretora franco-senegalesa idealizou o documentário durante a produção de “Atlantics” (2019), período em que Emmanuel Macron abriu os diálogos sobre a devolução de peças roubadas pelo exército colonial francês a seus territórios de origem.
Enquanto espectadores somos recebidos pelo filme com o aviso: “Esses artefatos estão entre os milhares saqueados pelas tropas coloniais francesas durante a invasão de 1892. Para eles, 130 anos de cativeiro estão chegando ao fim”. Após o aviso, uma voz que ressoa num emaranhado de experiências, nos conta, em Fon, a sua trajetória. A voz se trata da manifestação da alma-objeto da estátua do Rei Guêzo, décimo líder que governou o antigo Daomé de 1818 a 1858. Utilizo nesse texto o termo “alma-objeto” para tratar dos artefatos com base em entrevistas de Diop, que usa o termo “alma” para estabelecer que os objetos tratados no documentário são e estão vivos.
Guêzo nos conta seu processo de desterritorialização, conta também da violência e do desrespeito sofridos durante o cativeiro em território estrangeiro. Guêzo, vivo, conhecido e reverenciado em sua terra de origem, foi arrancado como outras centenas obras da cultura material de seu território. Violado como se estivesse morto, foi renomeado pelo número 26 e impedido de ver a luz.

“Estou dividido entre o medo de não ser reconhecido por ninguém e o de não reconhecer nada”
O uso de jogos com luz e sombra nos revela o cotidiano das peças, que por mais de um século estiveram reservadas ao escuro de salas frias e vazias. O filme explora com detalhes a rigidez no tratamento de peças roubadas e realocadas como troféus em espaços museológicos. Através de cortes de câmera diretos e ritmados com trabalhadores na movimentação das obras, o processo meticuloso de transporte é evidenciado pela diretora. A perspectiva de Ghezo conduz toda a produção, os sons, as cores e as luzes são utilizadas para delimitar a violência material, política e psicológica testemunhada por ele desde o século XIX. (TCHIBOZO, 2023).
“eu cresci na ignorância da minha herança, da minha cultura, da minha educação. Minha vida e minha alma ficaram mantidas no exterior por séculos”
Guêzo e os seus são recebidos em festa, e a reação da população beninense preenche o filme na medida em que nos aponta o imperialismo francês operante hoje. Em paralelo, o diálogo entre estudantes nos expõe que a devolução das peças não é o suficiente. Mati Diop põe em evidência a maneira em que a população beninense e as almas-objetos se encontram e interagem entre si.
Dahomey nos permite observar o cotidiano de pessoas comuns e os sentidos que essa população atribui ao retorno de sua cultura material, além disso, nos deixa imaginar os sentidos que as próprias peças atribuem ao cotidiano encontrado por elas durante seu retorno. A volta dos artefatos a seu território muito mais mobiliza do que gera apaziguamento em relação ao passado colonial. Também nos aponta a percepção de que a restituição se trata de um processo mais profundo, e que a arte surge como caminho para a construção de imaginários e poéticas que possibilitem a retomada do que foi roubado. A visão da diretora é clara, não podemos ter vergonha de registrar o testemunho miserabilista das ações coloniais para resistir aos apagamentos e às narrativas geradas pela colonialidade.
Autoria

Luiza Gonzaga Campos Bataline (Licenciatura em História – UDESC/FAED)
Graduanda em Licenciatura em História na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC/FAED). Trabalha como bolsista de extensão no Laboratório de Estudos Pós-Coloniais e Decoloniais AYA.
REFERÊNCIAS
DAHOMEY; Direção: Mati Diop. Produção: Judith Lou Lévy. França;Senegal: Mubi, 2024.
68 min. Disponível em:https://mubi.com/pt/br/films/dahomey. Acesso em:18 de mar. 2025.
FILM AT LINCOLN CENTER. Mati Diop on Dahomey | NYFF62. Youtube, 18 de out. de 2024. 26:47 min. Disponível em: . Acesso em:https://www.youtube.com/watch?v=w_94XGcYwUs&t=1416s. Data de acesso: 18 de março de 2025
SANTOS, V. S. A formação da Coleção Africana do Museu de Arqueologia e Antropologia da Universidade da Pensilvânia, final do século XIX. Afro-Ásia, Salvador, n. 68, p. 176–213, 2023. DOI: 10.9771/aa.v0i68.53437. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/afroasia/article/view/53437. Acesso em: 10 out. 2024.
SANTOS, Vanicléia S. (org.) et al. Cultura, história intelectual e patrimônio na África Ocidental (séculos XV-XX). Curitiba: Brazil Publishing, 2019.
TCHIBOZO, Romuald. Restituição dos bens culturais ao Benin: quais os desafios para a produção de conhecimento e a criação plástica?. Africanidades, Salvador, v. 2 n. 2, p. 288-296, março. 2023. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/af/article/view/53557/28647. Acesso em: 18 de mar. 2025.





